sábado, abril 22, 2006

Ai é? Então furem lá isto...

Memória Descritiva da visita guiada à exposição Eflúvio Magnético
de João Maria Gusmão e Pedro Paiva



As visitas guiadas decorrem no edifício sede da Galeria ###. Começam no átrio e reparte-se por entre os dois pisos ocupados pela exposição (intervalando-os com uma pequena pausa para lanche, no caso do 1º ciclo), numa duração mínima de 90 minutos a 2 horas e meia de duração. Os grupos são constituídos por turmas, a unidade básica de referência e de trabalho do nosso serviço educativo.

A estratégia pedagógica utilizada nas visitas é a que considera a teoria construtivista do conhecimento, “a” que implica que, entre as diversas possibilidades legítimas de enquadrar/encarar a aprendizagem, é o aprendiz que constrói o seu próprio conhecimento a partir das experiências com que se depara. O monitor e o espaço são os outros dois elementos intervenientes no processo de aprendizagem. A questão é: o conhecimento ensina-se ou apreende-se? A resposta será: “ambos os casos”. No entanto, as experiências museológicas não se compadecem com avaliações ou com aferições tautológicas. Tratam-se de experiências que nos podem ajudar a desenvolver o espírito crítico e a “trabalhar” os graus de subjectividade inerentes a cada um. E portanto, nas nossas visitas, tentamos que sejam os “aprendizes” a realizar um processo dialéctico com os objectos artísticos observados e a ponderar hipóteses, soluções e conclusões que façam sentido para todo o grupo. O monitor que orienta a visita tem mais por função colocar as perguntas adequadas que despoletem raciocínios lógicos do que dar as respostas (ditas) “certas”. Em suma, funciona como moderador realizando um diálogo permanente em que todos participam: Os que têm algo a dizer, “forçar” os mais tímidos a manifestarem-se e sobretudo tomar especial atenção às respostas mais significativas e confrontar todo o grupo com soluções pertinentes sugeridas pelos colegas (- Escutem, o/a colega disse “tal-e-tal”. Concordam? Sim? Não? Porquê?). Um dos aspectos destas visitas é o de serem, também, oficinas de pensamento.
Nesta óptica, pretende-se que a visita decorra num ambiente de cumplicidade no qual as regras restringem-se aos mínimos estritamente necessários, para que, de modo ordeiro, as visitas decorram dentro de um espírito casual e livre.

No átrio de entrada da Galeria e após a chegada das crianças, procede-se às apresentações e faz-se um pequeno levantamento de quem é que, no grupo, ainda não visitou a ### (estes casos são cada vez mais raros, mas ainda ocorrem). Em caso positivo, pergunta-se-lhes se os seus colegas lhes explicaram o que é que vinham fazer. É sempre interessante perceber como são descritas as visitas entre “eles”. Nos casos em que ninguém lhes explicou o que “é que vamos fazer hoje” pede-se a ajuda dos colegas que têm visitado a ### para, agora, explicarem o que é que “acontece” e o que é que se faz quando se visita a Galeria. Entretanto, calha que o espaço do átrio está sempre em mutação. Que há sempre alguma alteração, e muitas das vezes, as crianças entram e entre “Olá!” alguns reparam que “isto” está diferente. E costuma ser a partir daí que se começa. Esta visita vai ser uma longa conversa!

Este é o momento em que se toma o “pulso” ao grupo, identificando o tipo de comportamento colectivo e os elementos que irão precisar de mais atenção ou acompanhamento (desde o desconhecimento da língua portuguesa a distúrbios de ordem comportamental ou outros). Enunciam-se algumas regras para regular o diálogo que irá decorrer ao longo da visita (meter o dedo no ar quando se quer intervir e esperar indicação para falar). Num grupo que costuma ter uma média de 20 alunos, escolhe-se a dedo (em todos os sentidos literais) umas quantas crianças que irão levar consigo uns objectos que nos irão ser úteis. Não se trata propriamente de materiais de recurso pedagógico, mas no entanto… eis a lista: um íman; um íman partido ao meio, portanto dois pedaços; um minúsculo parafuso e uns pedaços de fita, restos inutilizados pelos artistas na mesa de montagem.

– O que é que está diferente? – Muitos começam de imediato a responder. Eis a oportunidade de reiterar as regras, que são poucas e simples. Para além do dedo no ar, não se corre, e, se formos empurrados não retaliamos, afastamo-nos, metemos o dedo no ar e dizemos: “empurraram-me.” Claro que esta última nunca foi seguida à letra. Mas é enunciada e concorre para um bom clima na visita, porque o monitor pode sempre repetir o que já foi dito, relembrando-os. Mais tarde e junto aos objectos artísticos enunciam-se outras, breves, regras.
– Isto! E aquilo, e já não há árvore, e o buraco agora está tapado e tiraram a pintura da parede.
– Porquê? Porque é que tiraram a pintura da parede?*
Há perguntas que não têm resposta fácil, mas todos ficam a pensar… Neste momento a parede é branca e a primeira peça – “Pedra a Cair”, projecção de 16 mm – encontra-se aí exposta. Trata-se de uma projecção com um plano invertido (virado em 180º) de uma montanha recortada por céu, a terra no cimo e o céu por debaixo, onde duas personagens caminham para o cume, na direcção de uma pedra em equilíbrio periclitante.
– Terá a ver com o filme? Podíamos vê-lo em cima da pintura?
– (todo o tipo de manifestações).
– Então o que é que vemos neste filme? – Pretende-se e insiste-se em que sejam exaustivos.
– Rochas! Pedras!
– Têm nome?
– Montanha!
– Mais! Só isso?
Costuma haver um pequeno silêncio
– Não vemos mais nada?
O monitor, se for caso disso, aproxima-se da porta de entrada, que entretanto foi fechada por causa das condições de luminosidade para a projecção, e esticando-se em direcção ao céu, pergunta para onde é que está a olhar.
– Para o céu! – Responde um coro colectivo.
– Ai é? E aqui (apontando para a projecção) estou a ver algum céu?
– Sim!
Salienta-se então a importância de enumerar todos os elementos que constam na composição. – Houve alguém que não tenha visto o céu na projecção? – Trata-se de uma pergunta aparentemente cretina, é óbvio que todos viram.
– Então porque é que não disseram? (…) – Olhem, tudo o que vêem é importante. Há mais alguma “coisa” que ainda não tenham dito? Vejam lá bem…
-- Algum ou alguns acabam por se aperceber que há alguma coisa no cimo da montanha, uns bichos ou umas coisas quaisquer. A partir do momento em que uns chamam a atenção dos outros, todos se põem a observar o cimo da montanha, e então alguém arrisca: – Homens!
-- Exacto! -- Chama-se-lhes a atenção para o facto do filme estar em loop (que chegando ao fim volta ao início). Os homenzinhos chegam a um determinado ponto e dão um “salto”, voltando ao início do seu trajecto.
-- Há mais alguma coisa? Alguma coisa que se destaque, que seja diferente de todas as outras?
Alguns dedos no ar, aponta-se para um/a:
-- Aquela pedra ali! É diferente. Aqui a criança costuma apontar numa direcção imprecisa, por causa da distância, mas que ajuda a que todos “a” encontrem.
O monitor que é bastante mais alto corrobora a ideia e aponta também:
-- Concordam? Aquela pedra é diferente das outras?
-- E então… O que é que lhe vai acontecer? O que é que vai acontecer a esta pedra?
-- (coro colectivo) Vai cair!
É o momento de lhes revelar que o título da peça. Subentendendo que foram eles que lá chegaram e partilhando a informação que as pessoas que vivem perto “dela” também acham que vai cair e por isso lhe chamam a «pedra a cair».
-- Mas, esperem lá… (ar de dúvida) aquela pedra quando cair… Vai cair para onde?
Eis um primeiro momento de polémica. O filme está invertido, mas, e muitas das vezes, só agora algum chama a atenção para o facto (Já todos o tinham percepcionado, mas é estratégia pedagógica deixar que sejam eles a referir elementos dessa importância.), o que vai originar reinterpretações da “realidade”. Uns levantam o dedo, apontando-o para o ar, e dizem para baixo e outros apontam para baixo e dizem para o céu. Gera-se uma saudável confusão onde, algumas vezes, entre eles, se começam a trocar argumentos e a justificar posições.
-- Então a realidade está de “pernas-para-o-ar”? Mas isso faz diferença para a pedra? Vejamos (apontando para cima), quem é que acha que a pedra vai cair para o chão? Dedos no ar! E (apontando para o chão) quem é que acha que a pedra irá cair para o céu? Dedos no ar!
Acaba por surgir a oportunidade de falar no “porque é e como é que” as coisas caem. Existe sempre alguma criança, mesmo no 1.º ano, que já ouviu falar na gravidade e à qual é dada a possibilidade de (se) explicar aos outros pelas suas próprias palavras. O monitor (se for caso disso) desenvolve e apresenta o princípio das “leis físicas”, começando por discutir o que é uma Lei e concluindo com a noção de que há propriedades nas coisas que não podem ser contrariadas:
-- [a apresentação do conceito é livre. Depende dos conceitos pré-existentes nos aprendizes.]

Pensando melhor no assunto, as crianças concluem que a pedra, mesmo numa realidade inversa irá “obedecer” às leis que a regem. Nas palavras das próprias crianças: “A pedra vai cair para cima!”

-- Vamos subir e deixar as mochilas e os lanches no 2.º andar. – Propõem o monitor. Só que entretanto irão decorrer diversas breves paragens no percurso.
Sobe-se os primeiros lances de escadas até ao painel que apresenta a exposição e os seus autores:

[Um painel irreprodútivel]

Inocentemente, pergunta-se-lhes se já sabem ler muito bem, razoavelmente ou (e tudo depende do ano) se já conhecem quase as letras todas. – Conseguem ler isto? – e aponta-se para o título.
No caso do primeiro ano fazem um reconhecimento das letras uma a uma e posteriormente um voluntário, pausadamente, lê a primeira palavra: E_F_L_Ú_V_I_O. (Em todos os casos, refere-se de passagem que para ler as palavras temos de identificar as letras: os elementos. Este assunto irá ser desenvolvido, já de seguida, com a 1.ª fotografia.)
-- Muito bem! E sabem o que é que quer dizer?
-- (silêncio e olhos arregalados) …
-- Ah! (expressão significativa, com ar de quem detém uma grande verdade.)
– Então, não basta saber ler. Temos de interpretar, compreender, perceber, entender… (todos os substantivos necessários até à compreensão do conceito). – Se lemos uma palavra e não sabemos o que é que quer dizer serve-nos de alguma coisa? -- As crianças concordam em que ler uma palavra que se desconhece não nos dá o significado da mesma.
-- E a outra palavra, quem é que a consegue ler?
-- M_A_G_N_É_T_I_C_O.
-- Óptimo! Alguém sabe o que é que quer dizer? Tem a haver com o quê?
Eventualmente, um ou outro sabe e todo o grupo passa a saber. Se não sabem recorremos pela primeira vez ao íman que uma das crianças guarda.
-- O Íman tem propriedades, qualidades, está na sua natureza, no seu feitio… (mais uma vez, não se foge de palavras difíceis, usa-se e depois substantiva-se até surgir entendimento. As crianças não devem ser protegidas destes “palavrões”, apresentamo-los e depois (não dando o ar de que se está a explicar) elucida-se os aprendizes com sinónimos.
(Tem continuação, mas vocês já não levam com o resto. Já basta o que basta.)

2 Bombadas­:

Blogger António acrescenta que...

Curti o comentário aquele texto...

Já este não é uma crónica. É um livro!lol

9:16 da tarde, abril 22, 2006  
Blogger [ t ] acrescenta que...

(ainda não consegui ler este... talvez nos proximos três dias ganhe coragem)

2:13 da tarde, abril 28, 2006  

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