segunda-feira, maio 08, 2006

«... abismo no meio do temporal de uma noite, que afinal, está toda inundada»

Esta é ambiciosa. E acontece por que num consigo ter nada para vos contar. Ou por onde começar seja o que for, ou o que quer que seja. Amén (assim seja, ái min... para os curtos de vista até faria um desenho.)

«(...)De repente começou a agitar-se. Dir-se-ia que avisava a criança. Era o vento que tornava a levantar-se.
Nada de tão extraordinário como aquele morto em movimento.
O cadáver pendente do extremo da corrente, impelido pelo sopro invisível, assumia uma certa atitude oblíqua, elevava-se para a esquerda, tornava a descer, e tornava a subir para a direita, e assim subia e descia com a pausada e fúnebre exactidão dum pêndulo. Era um vai e vem terrível. Julgar-se-ia ver nas trevas o pêndulo do relógio da eternidade.
Durou isto assim algum tempo. O pequeno, na presença daquela agitação do morto, sentia-se despertar, e atrás do resfriamento que o invadira, sentia claramente medo. A corrente a cada oscilação, rangia com uma regularidade medonha. Parecia que retomava fôlego para recomeçar. Aquele chiar assemelhava-se ao canto da cigarra.
A aproximação de uma borrasca produz súbitos ímpetos de vento. A brisa tornara-se de repente ventania. A oscilação do cadáver acentuou-se então sinistramente. Já não era balanço, era abalo. A corrente que rangia, gritou.
O grito da corrente parece ter sido ouvido. Se era um apelo, foi entendido. Do fundo do horizonte acudiu grande ruído.
Era o ruído de asas.
Sobrevinha um incidente, o incidente tempestuoso dos cemitérios e das solidões, a chegada de um bando de corvos.
Inúmeras manchas negras voadoras picaram o nevoeiro, furaram a bruma, aumentaram de volume, aproximaram-se, amalgamaram-se e condensaram-se, apressando-se para a colina, soltando gritos. Parecia a vinda de uma legião. Aquela escória alada das trevas chegou e pousou na forca.
A criança, assustada, recuou.
Os enxames obedecem a ordens. Os corvos tinham-se agrupado na forca. Nenhum estava sobre o cadáver. Falavam entre si. O grasnar é medonho. O uivo, o silvo e o rugido, representam vida; o grasnar é a aceitação satisfeita e voluntária da putrefacção. Quando se ouve grasnar parece ouvir-se o ruído que produz o silencio do sepulcro, ao despedaçar-se. O grasnar é uma voz que contém trevas. A criança estava gelada.
Mais ainda pelo terror que pelo frio.
Os corvos calaram-se. Um deles saltou para o esqueleto. Foi um sinal. Precipitaram-se todos, viu-se então uma núvem de asas; depois todas as penas se fecharam, e o enforcado desapareceu debaixo de um formigar incrível de ampolas negras que se agitavam na escuridão. Naquele momento o morto sacudiu-se.
Seria ele? Seria o vento? Deu uma espécie de salto medonho. O vendaval que se estava a desenvolver, ia em seu auxílio. O fantasma entrou em convulsão. Era a rajada, soprando agora em plenos pulmões, que se apoderava dele e o agitava em todos os sentidos. Tornou-se horrivel. Não parava de se mover. Era um boneco medonho, tendo por cordel a corrente de uma forca. Na sombra havia decerto algum parodista, que agarrava o cordel, e se divertia com aquela múmia, que volteava e saltava, como prestes a deslocar-se. Assustados o0s pássaros levantaram voo. Foi um ressaltar enorme de todos aqueles animais infames. Depois voltaram, e logo principiou a luta.
O morto pareceu então animado por uma vida monstruosa. Os ventos erguiam-no como se quisessem levá-lo; dir-se-ia que se debatia e esforçava por evadir-se; a golilha que lhe cingia o pescoço detinha-o. Os pássaros reproduziam todos os movimentos que fazia, recuando, depois avançando, enfurecidos e encarniçados.
De um lado, extraordinária tentativa de fuga; do outro, presseguição a um acorrentado. O morto, impelido por todos os espasmos do vento, tinha sobressaltos, abalos e acessos de cólera; ia, vinha, subia, descia, repelindo sem descanso o enxame disseminado. O morto era clava, o enxame poeira. A terrivel saraivada assaltante não largava a presa e mostrava-se cada vez mais teimosa. O morto, como que atacado de loucura sob aquela mantilha de bicos, multiplicava no vácuo as suas pancadas cegas, que fazia lembrar o girar de uma pedra na funda. Por momentos tinha em cima de si todas as garras e todas as asas, depois nada; eram desvanecimentos da orda seguidos imediatamente de novos e furiosos ataques. Terrível suplício que continuava depois da morte. Os pássaros pareciam fernéticos. os respiradores do inferno devem dar passagem a semelhantes enxames. Ferimentos de garras, picadas, o grasnar contínuo, o arrancar de pedaços que já não eram de carne, o ranger da forca, o roçar de um esqueleto, o tinir de ferragem, o sibilar da rajada, o túmulo, enfim; não se pode imaginar luta mais sinistra. Um duende contra demónios. Uma espécie de combate entre espectros.
Por vezes, redobrando o vento, o enforcado girava sobre si mesmo, resistindo ao enxame por todos os lados alternadamente, parecia querer correr atrás dos pássaros. Quando virava para eles os dentes, parecia querer mordê-los. O morto tinnha o vento a seu favor e a corrente contra, como se naquilo se intrometessem deuses das trevas. O vendaval era a batalha. O enforcado estorcia-se, o bando de pássaros rodava por cima dele em espiral. Era um rodopio num turbilhão.
Em baixo ouvia-se um rugir imenso, que era o mar.
A criança olhava para aquele sonho. De repente pôs-se a tremer como varas verdes; ao mesmo temppo, correu-lhe por todo o corpo um calafrio, cambaleou, faltou-lhe a vista e esteve para cair, voltou-se, apertou a cabeça entre as mãos, como se a cabeça fosse um ponto de apoio, e, desvairado, com os cabelos ao vento, desceu a colina a passos largos e comos olhos fechados, quase fantasma também, fugindo e deixando atrás de si aquele tormento na noite.»
Vitor Hugo in O Homem Que Ri, Capítulo 5: Árvore De Invenção Humana

2 Bombadas­:

Blogger Mary Lamb acrescenta que...

P'ra variar... Não tive temppo! Bolas!

9:05 da manhã, maio 09, 2006  
Blogger Goiaoia acrescenta que...

(num esquecer) Dar_linda:
Este guardo-o e torno-te a apresentá-lo daqui a uns muitos tempos.
Sempre que ou quando for necessário. E isto se... o fôr.

11:12 da tarde, maio 10, 2006  

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