terça-feira, julho 18, 2006

A Palavra

«há palavras que são perfeitos beijos na boca»

Há, de facto, muitas palavras - perdoem-me, vou arriscar aqui uma sinópse'zona de um conto tradicional africano (África negra muçulmana) -, palavras que salvam e palavras que matam:

Certo dia na praia, um pescador descobriu uma caveira reluzindo ao sol. Meio curioso com este macabro achado, acercou-se um pouco e aproximou-se mais, dobrando-se por fim e quedando-se assim, contemplativo.
- A Palavra! - Ouviu de súbito o pescador.
Julgando-se sozinho, o sobressalto foi de tal ordem que deu “o” pulo num virote e se pôs, esgazeado, a olhar para todos os lados. Na praia num se vislumbrava viv’alma. Desconfiado mas mais relaxado, o pescador encolheu contrariadamente os ombros mas nisto e de novo:
- A Palavra! – O pescador ergueu os punhos e pôs-se a dançar o fandango.
- O que é? O que é? O que é? – Ou mais literal e precisamente – Úqué!Úqué!Úqué! Ond’estás… quantos são?!?!?
E nada.
O pescador ficou consternadíssimo consigo próprio e pensou: «num me querem a lá a ver…? A ouvir “coisas.”» Decidiu logo ali que num ia contar nada à mulher.
Já completamente esquecido da caveira volta-se de imediato para o trabalho de recolher as redes, só que… e talvez, um pouco mais pausada:
- A Palavra!
Desta vez o pescador estacou, arrebitando acentuadamente os ombros e afastando as palmas das mãos esticadas quase como quem quer ensaiar um levantar de voo. Teve um pressentimento um arrepio ou lá o que seja e jorrou-se de joelhos incrédulo perante a caveira, fitando-a profundamente nos olhos ou na falta deles. Passado um significativo momento de silêncio a caveira torna a proferir:
- A Palavra! O pescador levanta-se ao arrepio a esbracejar e desapareceu pelo horizonte adentro, esquecendo redes e peixes e tudo.

A correr, a correr e ainda a correr foi direitinho e só parou na “grande” localidade onde residia o Soba (que é assim uma espécie de reizito). E jorrando-se (pela 2.ª vez nesse dia), prostra-se diante do Big Kauna, arfando e mudo…

O Soba, com ligeiro enfado, indica ao ministro que afaste ou remova aquele trambolho que para ali caíra, que para ali ficara. O ministro ergue o sobrolho para dois brutamontes armados, que, de lança e escudo e meio atrapalhados (os escudos escorregavam dos ombros onde ficavam tão garbosos), e erguem-no pelos ombros. O pescador uivou, recuperando a voz, e, ainda agarrado mas já de pé lança-se num discurso fernético:
- A caveira! A caveira, ela fala… Não estou louco, eu ouvi, três vezes três e não estava lá ninguém e a caveira falou e eu vi e ouvi com os com os meus olhos e ouvidos que o mar há-de levar… - Todos na sala do real conselho se miraram mutuamente. O soba encolheu os ombros, o ministro ergeu o sobrolho e os guardas viraram-se e, de “fardo” pelas mãos, lá se prepararam para remover o “escolho” de diante de Sua Augusta Figura. O pescador tornou a uivar, e desta vez mais alto e lancinante. Um dos guardas largou-o assombrado e o Soba ergueu-se, furioso.
- Óh desgraçado, óh dejecto de minhoca mas o que é que tu Me queres,… sua espécie de mal-maluco.
- Não sou maluco nem malmeluco, sou mesmo daqui, o que lhe traz todos os dias belas douradas de aviário. E eu vi, eu vi: lá longe na praia uma caveira que falava. Eu vi, não foi visão nem nada que se pareça.
- Se calhar foi insolação – retrucou o Soba – Está mais calor aqui do que na Olissipónia.
Mas pronto – prosseguiu – venha de lá essa caveira!
- Óh, senhor, num me atrevi nem me atrevo a tocar-lhe…
- Mas então o que é que queres que eu faça? Que vá atrás de ti?
O pescador anuiu abanando a cabeça como os cães as caudas, e ainda para mais espumava e salivava do esforço e ansiedade.
- Olha-m’este… Num querem lá ver, às três da tarde… Mas seja, vamos lá ver essa #### dessa caveira que fala. Mas desde já te aviso… Se for em vão, estás feito em mandioca!
Saiu a comitiva realzita com o pescador todo curvadinho com um sorrisinho apalermado que lhe ia de um hemisfério ao outro da testa.
- Por aqui, por aqui, venham comigo por especial favor e muitos obséquios…
Andaram, andaram, andaram e todos transpirados e desalinhados, começam a vislumbrar lá ao longe um monte emaranhado.
- São as minhas redes, estamos lá quase. – Ninguém lhe responde e muitos bufam.
Aproximam-se e, de facto, lá estava a caveira.
Cheio de sorrisos, ora para aqui ora para ali, como quem vai apresentar a namorada reguiló-punk ao pai reitor, com os braços e mãos insiste para que todos se acerquem e, uma vez satisfeito, em tons muito formais, chama, clama e pede:
- Caveira, óh Caveira, trouxe diante de ti o Hómem mais importante do mundo. Por favor, quem Sois? ...
Todos, interessadíssimos, se debruçaram para ouvir a resposta. E assim ficaram… à espera.
Estático, de mãos e braços em solicita pose, o pescador quedava-se expectante. Até que alguém se riu… E aí o pescador jorrou-se todo pela 3.ª vez nesse dia.
- Caveira, diz qualquer coisa, qualquer coisinha, vá lá, como fizeste à bocadinho, sim? Vá lá… - choraminga, aflito, o pescador
Nada!
O ministro arqueou os dois sobrolhos de uma vez e o Soba virou costas com enfado o que fez com que, de joelhos, o pescador se agarrasse às pregas da realzita Jilába.
- Espere, espere… “Ela” já falou, temos de ter paciência, por favor.
O Soba dirigiu-se ao ministro, arrastando o pescador, e fez-lhe uma curiosa combinação de sinais, que muito curta e rapidamente incluíram um coçar de orelha, dois piscares de olhos e uma fungadela.
O ministro vociferou de imediato as seguintes ordens:
- Apanhem-no e atem-no! Tu abre um buraco e tu saca da espada… - e virando-se para o pescador diz, em tons muito suaves. – Olha, tens razão, é melhor ficar aqui alguém à espera, alguém com muita paciência para esperar. Portanto, ficas tu a fazer-lhe companhia, certo? Sem pernas nem nada que é para num ires “ali” enquanto esperas.
Dito e feito: Abriu-se na areia um buraco muito fundo eenfiou-se o pescador lá para dentro, até ao pescoço. Depois, veio o da espada e: Zúúúúpp, cabeça fora. Indelicadamente e pelos cabelos, alguém recolheu a cabeça e colocou-a, frente a frente com a caveira.
Riram-se um bocadinho, mas, por fim, todos bufaram e encetaram o caminho de regresso. Houve um mais espertinho que ainda recolheu as redes e outro que se agarrou ao peixe, que achado num é roubado.
E assim foram, andando, andando, até desaparecerem lá ao fundo.

Ficaram, na areia, estes dois despojos em insólita configuração. Nisto a Caveira pergunta:
- E a ti? O que foi que te trouxe aqui?
- A Palavra! Retorquiu a Cabeça.


[A seguir, num percam... "A Caveira e o Lenhador."]

2 Bombadas­:

Anonymous Anónimo acrescenta que...

Adorei!
Palavra de quem não mente!
;)

Beijos.

2:24 da tarde, julho 20, 2006  
Anonymous Anónimo acrescenta que...

:)

Que caveira!

4:08 da tarde, julho 20, 2006  

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